sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Escritas em Dança: Dançar o tempo, dançar com o tempo, dançar sem tempo: Uma visita aos (in)cômodos de Silvia Moura (por Clóvis Domingos)

Ensaio escrito a partir do trabalho Casa-Corpo-Mulher-Árvore, apresentado virtualmente na Mostra Dança Agora do Itaú Cultural de São Paulo.


- por Clóvis Domingos


“O tempo, o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio reconhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história”.
― Raduan Nassar em “Lavoura Arcaica”. 



Nota um: o começo de não saber como se espantar

Entrenotas.  

Talvez começar pelo fim. 

Entre aproximações e afastamentos realizados pela câmera, a dança minimalista, às vezes delicada, outras vezes vigorosa, de Silvia Moura, nos convida a habitar e passear por sua casa. Ou serão suas casas? Silvia é Corpoárvoremulher que Casa e junta os pedaços.

Nesta criação-árvore frondosa muitas danças se reatualizam e bailam memórias. Se pensarmos numa economia da criação enquanto modo de permacultura, a artista remexe, revira e recolhe partes e restos de seu inventário de espetáculos, frutos de uma sólida carreira de 45 anos, e numa poética do rearranjo, os recria através de outras configurações e fabulações. 

São videodançares, como afirma o pesquisador e crítico Joubert Arrais, que permeiam questões como: a transitoriedade da vida, a certeza da morte, o onírico da infância e a brutalidade das relações humanas. É desse material, desse barro que a artista molda suas esculturas moventes. Embarcações para viagens profundas, melhor avisar!

Em Casa-Corpo-Mulher-Árvore cada visita a um cômodo expõe um incômodo. 

E vale um lembrete: Silvia é uma excelente contadora de histórias.  



Nota dois: enquanto vivemos também estamos nos despedindo

Ela não abandona seus movimentos, trechos coreográficos, nomes e rostos de pessoas e grupos, o amor e a comida de sua mãe, as falas, pensamentos e experiências que o tempo não consegue roubar ou fazer com que ela, deles se despeça. 

Suas des-peças são na verdade muitas peças numa peça só, como um quebra-cabeças que parece não se completar e talvez nem possa. 

Des-peça como não-peça porque é mais engrenagem e motor do que coisa estagnada. Silvia é caos e ordem.

Uma peça con-versa com outra. Estão ali outros trabalhos dela como Anatomia das coisas encalhadas, Engarrafada, A cadeirinha e eu. Está ali a “dança-desabafo” dessa bailarina que já conheci madura na quarta edição do Festival Curta Dança em Belo Horizonte, em 2019, referência para muitas gerações de artistas do Ceará e do Brasil. Estatura pequena, inquietude gigante. 

Estamos ali, eu e você, Silvia. Nós e tua casa-cenário e a árvore que cortaram do teu quintal, mas não cortaram das tuas vísceras.

Eles matam, você faz viver.  Não suporta as ausências. 

Os desenhos e murais feitos nas paredes pela filha também artista celebram alianças, povoam a casa e fecundam linhagens. O feminino ali é umbilical. 

Nota três: saudades do mar

Trago agora algumas características presentes nos trabalhos de Silvia Moura: uma dança falada e meditada, puro exercício de filosofia. São associações livres de sentimentos presos. “Senta, que lá vem prosa”. O biográfico entre ficção e memória. A dimensão confessional. Ela nos oferece água e café e a mesa coberta todinha de sentimentos. O pão é palavra saborosa. Ela preza pela proximidade e participação dos espectadores que também constroem o trabalho junto, são convocados e integrados. Corpo coletivo.

Há também a recorrente utilização de objetos configurando minúsculas cenografias e coleções numa justa medida entre o essencial, o cotidiano e o poético. Um gesto de zelo. As paisagens sonoras talvez sejam as provenientes dos objetos ou da coralidade urdida pelas vozes ressoadas no encontro cênico. Entre ruídos e silêncios, saímos de seus espetáculos mais humanizados. Humildes. O doméstico transfigurado em público.  O pequeno que abre abismos e buracos. 

Se a saudade do mar aperta seu peito, ela pega sua coleção de tampinhas e consegue com elas criar água para molhar desejos. Seus longos cabelos brancos serpenteiam como sinuosas ondas aquáticas. A cama toda azul é mar de água espumante.

Bruxa, ela liquefaz a dureza da realidade presente nos interditos e proibidos. Pela imaginação e utilização daquilo que já está ali roçando a pele e os poros, os possíveis se apresentam e as dores colorem e cicatrizam pela ludicidade de uma arte menina, bailarina, travessura e travessia. Saudade pode gerar doença, mas pela subversão dos usos dessas coisas destinadas ao abandono e descarte, viram saúde, saída, salvação. O precário em sua ascensão dá uma piscadela marota para nossa besta suntuosidade. 

Em toda apresentação ela quase se afoga de tanto que chora. A gente acaba rindo até um pouco por desespero.

Saudades de amar. 


Nota quatro: essas duas mulheres

Em Casa-Corpo-Mulher-Árvore Silvia Moura me deixou meio perdido e confuso. Não seria ela também um pouco Pacarrete, a inesquecível personagem do filme do Allan Deberton? Há algo da Pacarrete interpretada magistralmente pela Marcélia Cartaxo em Moura. Ambas brigam, ventam, choram, insistem, se veem sozinhas, fundam seus mundos particulares para dançar, não fecham jamais as cortinas. Tudo fica escancarado.

Nos violentam pela força da beleza. Encarnam a dádiva, a entrega, a intensidade, a loucura, a obsessão, as saúdes plenas não suportam os retos planos, então o giro é certo. Os desvios curam, arrepio eu senti, o preço que elas pagam deve ser caro, mas quem dança as vulnerabilidades não armazena cadáveres nem fantasmas. Perdição é não fazer, não ouvir e nem seguir a voz dos desejos, o sussurro do balançar das folhas de uma árvore casa mulher, os movimentos do inesperado. 

Ela, a dança, afinal é mulher. As coragens se precipitam assanhadas. 

Nota cinco: ser amiga do tempo

Silvia Moura é artista contemporânea, com o tempo tece o improvável, dele se aproxima e faz amizade, conhece as esperas, respeita as pausas, abraça os acontecidos e neles acontece com sua artevida. Atrevida, con-fia na próxima empreitada, enreda seus medos, não foge dos lutos, das lutas e das luas. A noite é um feito um gato que espreita, vive repleta de mistérios.

Silvia faz das escuridões: clarões. 

Traz a ebulição do signo de escorpião. Parece amar o risco. Carece armar o riso.

Sua matéria é o tempo, tempo, tempo, tempo.

Ela dança com ele. Ele dança com ela. Entre duetos e duelos, comungam as passagens. 

Ele faz suas marcas no corpo dela. Ela faz dessas marcas: gestos. 

Vingança vem em forma de “Vim dança”. 

Ela o convence a ser mais generoso com a gente. 

Como cantava Manoel de Barros: “eu não amava quando botassem data na minha existência. A gente usava mais era encher o tempo. Nossa data maior era o quando”. 

Silvia me emociona com sua dança-advérbio: quando casa, quando árvore, quando corpo, quando ginga, quando xinga, quando mulher. Quando vida. 

Quanta vida!


Nota final ou inicial? 

Em Casa-Corpo-Mulher-Árvore você afirma que vai voltar a dançar livremente como antes, Silvia. Eu discordo porque você já está dançando assim agora. 

Num tempo sem antes e sem depois.

Você

Mulher do seu tempo, que afirma a vida nesse momento,

Espirala

Esbarra e

esparrama o tempo!


Ficha técnica:

Criação/Interpretação/Coreografia: Silvia Moura

Músicos: Quio Petrus e Manuel Belisário

Textos: Silvia Moura

Participação especial: Germanno Santos

Pinturas e murais: Iná Moura/Noandro Meneses/Silvia Moura/Magdiel Menezes

Instalações e montagens: Pádua de Oliveira/ Silvia Moura/ Iná Moura/Noandro Meneses

Criação de luz; Marcos Silva e Silvia Moura

Técnica: Marcos Silva

Assistente de Técnica: Aline Sebastião

Captação de imagem e vídeo: Allan Diniz

Fotos: Luiz Alves

Apoio: Itaú Cultural



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