quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Escritas em Dança - Dançar sem medo

 Dançar sem medo 


por Giovany de Oliveira



Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:

  • Me ajuda a olhar!”


GALEANO, Eduardo, “A função da arte/1” in: O livro dos abraços, p.15.



“Breu” de Bianca Sanches e Irlan Paixão


Algumas vezes o medo se coloca fortemente presente nas pessoas e em suas relações. Talvez seja este um dos sentimentos que teremos de processar e lidar por algum tempo, enquanto durarem as lutas pela emancipação de todes e à todes forem conferidas a dignidade e o respeito. No contratempo do compasso dessa época, fui convidado a dançar por Clóvis Domingos com algumas ideias sobre os trabalhos assistidos dos três últimos dias da programação do Curta Dança BH 2021.


Porque não iremos deixar de dançar, o Curta Danças BH 2021 se inscreve com a sua mais recente edição enquanto catalisador de forças e pulsões. Ciranda de estéticas e discursos. Os acontecimentos dessa época têm sido intensos e muito duros. Vemos surgir e se desdobrar toda sorte de conflitos sociais e filosóficos, mas muito poucos para-quedas coloridos. É nessa curva da história que o Curta Danças mobiliza encontros em alinhavada curadoria. 


Trabalhos diversos como diversas são as faces das artes das Latino Américas, a redimensionar o jeito de se pensar dança para o audiovisual. Paradigma cada vez mais iminente para artistas da presença, antes nem tão habituades às lentes e agora passando um bom tempo com elas. Quiçá justamente esse deslocamento de corpas e corpos antes tão presentes nos palcos, ruas e salões para a linguagem audiovisual, é que provoque o impulso desse redimensionamento. 


E aqui vimos tramados em fina curadoria, trabalhos de diferentes naturezas, a pautar de certa forma as percepções de seus artistas em sua época, gerando um ambiente rico de trocas e reflexões filosóficas, estéticas, políticas, semióticas e mais um sem fim de reverberações possíveis para a conversa. Importante registrar a beleza da diversidade de técnicas que as corpas e corpos dos intérpretes trazem para essa trama. Diferentes referências, modos, poéticas e práticas se apresentam numa importante roda de saberes. 


Tempo. Como num rito, uma convocação, sou tomado por uma emoção fininha no fundo de mim. Sabe quando alguma coisa se desloca no íntimo e não identificamos de início? Uma coisa louca. Aqui sou apresentado à “Canción sin miedo” de Vivir Quintana e El Palomar, me reorganizo na cadeira. Que música bonita! O trabalho me emociona e me posiciona responsável pelo mundo, pelos outros. Um brado forte como esse convoca, convida, sou enredado. O coro de El  Palomar, um coro de mulheres, dá voz a letra de Vivir Quintana, uma letra firme, onde a eu lírico desenvolve um verdadeiro manifesto contra o machismo, feminicídio e outras violências. 


Cada uma delas, é potência desse manifesto canção, onde denunciam os crimes que as acometem ainda; e marcam posição na história, a exigir reparação e memória para aquelas que aqui estão e por aquelas que já se foram. Suas vozes fortes ali na vinheta, arranjo apurado e entoando uma canção sem medo, me gera uma tempestade na cabeça, de pautas e necessidades, e problemáticas que ainda deveremos percorrer para encontrar um mundo mais seguro para todes. Brotam brados do fundo das gerações de mim. E transbordam brados da tela. 


“Desbordes” transborda essa tela mesmo. Débora Sansó tateia devires possíveis para o que se supunha inabitável. Diretamente da Argentina, a artista elabora densa semântica, seu pincel vermelho é certeiro ponteiro. Transfere peso como quem respira, desenvolve trajetórias em planos e velocidades mil. Água na bacia, mar de si.. Que lhe dizem os pássaros e o vento? Cabe elaborar questões? Débora inscreve nuances, voa por uma cama, bota o movimento à mesa. O que lhe diz esse papel? Traduz inquietações, propõe jeitos. Dilatar também é correr, veja bem o mar que nunca se atrasa na bonança e na tempestade. Fotografias refazem um banheiro. Que mulher é esta? E esta mulher? Move paredes, crepitam luzes, vermelho. Revela feridas. Desejar! Vacila para avançar. Avança como para reconstruir. Uma imagem, será a sua semelhança? Os ritos desenvolvem sua progressão e um portal se abre para o sem fim do infinito, revela uma face que não vemos, ela corre, voa com destino ao mar.


Sobre inquietações podemos falar de “Avesso”, que trás do universo doméstico da pandemia, imagens para a pulsão de seu movimento. Da intimidade de um lençol de que se move, sou levado na dilatação de braços vivos. Um raio dispara progressões em diferentes planos por sobre uma cama. Lucas Manfré roça a existência, lá está nesse palco de borda infinita. Propõe rolamentos, quedas, a instabilidade é manifesta. Explora-a em diferentes velocidades e planos. Um devir só. Solitudes e inquietudes se refazem com o tempo, esse que é medida de todas as coisas. Lucas vira o verso no avesso do movimento que expande para recolher e recolhendo, expande enfrentamentos de cansaços, flutua. Torcem escápulas, movem-se arquiteturas. Contemplar o interno, giro. A cabeça vai primeiro. No inverso do verso de um universo, no avesso de um espaço assim tão íntimo, bem te vi. Num corredor e mascarado, bem te vi. Porta perto, salto e base. Mergulho no azulejo. Ser, estar, mover. Devir é luta.


Para as minhas lutas, chamo a força dos catiços, presente em “Catiço” de João Petronílio. O dançarino surge na quebrada, vai acender suas velas. Boca de luz, boca que vela, revela, boca que desvela, boca de catiço, boca de pinga fogo, boca de confusão. João é ao mesmo tempo entidade e médium, incorpora séculos de expressão, abre uma gira. Uma melodia chama os catiços. “Cês me dão licença e fica à vontade”. O artista nos relembra que voz é corpo. Tece espirais, transfere pesos, imanta energias. Laroyê! Doi! Doi! Doi! Doi! Doi! Um amor faz sofrer! Dois amor faz chorar! Treme a terra, a cera atinge o corpo do performer. Veste branco, veste luto, veste lutas. João morre para a viver a dança e nela renasce o catiço em noite profunda. Fogo, chama, combustão, a ginga de João é explosão solar,  infinda em si mesma. Grande Anganga Muquiche, sua gunga não bambeia! Arde, vira, virou. O transe é de antes, já é e transborda. 


(Com borboletas no estômago, me correspondia com Clóvis sobre as impressões que me faziam vibrar a cada trabalho, força pura! Calor…)


Para arder ferve a “Mandusada” de Amélia Conrado, Andreia Oliveira, Eduardo Almeida e Sibele Bulcão. É sol, é água, é mata, é folha e ar. Algo se move, me move. Uma estrada, uma rede, bastam para “frever”. Registram a mandusada e a atualizam em novas máscaras. Aqui intérpretes são o próprio elemento, chama e água e terra e lama e poeira e tudo de mover. Com o pulso do frevo de Siba, experimentam diversas velocidades, a edição sobrepõe performances e os intérpretes parecem estar juntos algumas vezes. Quadradinho de quatro, de oito, de um milhão. Voo. Pressa ardente de viver. Rastros, pegadas, registros. Desenham novas formas de dizer.


E diz muito “Meu lugar de fala” de Paula Marinho. Num campo nublado a negrura da mulher irrompe a campina, acelera segura. Obá é uma guerreira valente. Desvela camadas, revela torções. Cambré. Incorpora um protesto, é certeira. Hey! Controla seu centro, tem base. Velocidades, planos e espirais. Ela fita, encara. Tece um feitiço, confirma no Aú. Saúda a terra, evoca a memória da terra, o sangue seu, o sangue meu, o desta mesma terra. Paula é Yabá e é Legbara. Paula é dona do barro como Obá, dona das águas silentes.  De águas silentes enuncia mundos. Hey! Como Oyá pontua o destino daqueles que se foram, tão jovens. Menos um para nós e mais um para eles. Bravamente dança dores seculares, organiza mandingas debaixo do seu pé. Ruma ao futuro como quem encara uma guerra.


Cássia Messeder e Luiza Machado convidam ao futuro na cena “Um corpo que é só meu”. Vestido branco, macacão preto. Solo de piston, ijexá, espirais. A música de Ekena preenche o espaço. Leveza e beleza. Pé no chão, contato. Me dê sua mão! Gira, vira, revira tudo e roda. Tem contato, profusão de forças, reverência. Capoeira, balé,  samba de roda, contemporânea, barravento, ijexá, jazz, é tudo delas e de suas manas, que convidam a dançar. Apoteose da partilha, comunhão de manifestos. Dançar é uma revolução! É tudo delas, dançam, agitam as corpas na obra por se construir. O trabalho das artistas me lembrou o que diz o pixo de um beco ali “Teu corpo é poesia mulher, declame!” E declamam passos de dança, as incríveis mulheres dessa América, para girar o pensamento sobre as corpas por esse território.


Em meio a dunas e entre pássaros, "Territórios de afecto” de Carlos Nuñez e Pedro García colocam em deriva novas formas de masculinidade. Espaço no passo do outro. Me abraça? Na pergunta e na resposta algo aparece do contato improvisação, transferem peso sem demandar. Mar que borda limites para o humano. Pegadas e rastros, o que te inquieta homem? Pode falar! Nesse território de afeto podes decantar humores, os artistas nos convidam a isso e não há porque se furtar do exercício. Contato, com tanto, com tato, contudo. Salto, solto. Queda e recuperação. Entre voos e rolamentos, me abraça forte à luz do dia? Me reconheço em você. Abraço forte. 


Forte é “Breu”. Bianca Sanches e Irlan Paixão nos situam intimamente dos acontecimentos do dia três de novembro de mil novecentos e dois mil e vinte. Nessa data, a população do Amapá se viu diante das consequências da privatização dos serviços de energia elétrica e inação dos governantes, quando após forte chuva, 13 de suas 16 cidades ficaram sem luz. Foram 22 dias de caos, com os serviços interrompidos, escassez de alimentos e água, protestos e tensão. Raio, chuva, trovão. Vela e giro, pé no chão e fé no nada. Energia. Minha mãe, água informação. A dança como denúncia do Estado que abandona e a imprensa que se curva. Nada é só e é isso; não é por acaso, um descaso que não pode ser lembrado como acaso. Há um projeto em curso, os artistas o sabem e pontuam. Vinte e dois dias no breu, consegues imaginar? Dançar para mover a linha tênue e alagada que separa nortes e sul. Cavar potências e dançar a denúncia daquilo que nos extermina. Ou a renúncia do inominável que nos pilha.


Yuriê Perazzini cava potências nos becos de Salvador. Nos apresenta arte contemporânea da melhor qualidade. Um fone, uma batida, uma explosão. O gesto vem irrompendo e estoura. Amarelo, verde, vermelho. Desliza as voltas da música de Damian Marley. Numa deriva, Yuriê nos revela a mais fina curadoria em graffitis, pixos e lambes do seu percurso. Quem tem, joga e chama no twerk, no funk, kuduro e street dance e bota mais e mistura tudo, avança para além da arquitetura; propõe movimentos para o ambiente, para a cidade. Experimenta os limites que vem dessas encruzas todas. Reverência e esquina. Magia.


Experimentos e magias ouvimos em “Ecos de recolhimento” com Bárbara Maia, convite a sentir, respirar, ouvir, cheirar, tocar. Mover pelos sentidos. Luzes, sombras, cinza. A audiodescrição é um importante elemento da construção. Olho vivo, pisca atento, fita. Dedos pesquisam. Do tato ao todo e à parte. Um universo infindo que espraia em infindos multiversos. Como jogar com a vulnerabilidade? Vela, instabilidade, inverso e avesso, torce e retorce, procura mas não vê. Por um foco acompanhamos o desenvolvimento e eu que estou sentado, tenho joelhos flexionados. Que textura é essa? A artista ouve a terra, vive os apoios, escorrega pelas suas possibilidades em velocidades que se alternam. Não tão lento como uma tartaruga. Estamos prontos para essa conversa? Para Roberta Abdala!


Entre pássaros e tartarugas, segue ligeiro um caranguejo. Amanda Moreira marca trajetória e compasso em “A(CU)PE é minha”. Num campo e coroada, apresenta as faces da realeza africana.  A voz de Uéslei Max  musicaliza manifestos imprescindíveis aos progressos da dança. O plano abre e Amanda cresce, reina por toda a extensão do enquadro quando desenvolve sequência de giros e espirais e rolamentos e infinitudes. Pulsão ancestral em gingas atualizadas. Planos e velocidades permeiam a obra. Areia, vento, arbustos, histórias, águas. A realeza africana não só pode como voa. 


Voa na linguagem Rafaela Lima na obra “Feminal”. O que mascara a máscara? O que revela desta mulher? Tapete, box, casa. Tão familiar e tão sufocante. O plástico do box oferece a materialidade das relações tóxicas, na medida em que a intérprete desenvolve partituras de anulação do seu rosto com esse objeto. Parece prender a artista, que reúne dores fortes de diversas companheiras, aqui transmutadas em linguagem e denúncia. Água de choveiro, jogos com os braços. A água acalma ou provoca? Injusto carregar tanto. A água que é feminina, ampara e afoga, mas não engana ninguém. Já o mesmo não se pode dizer do que medra do masculino.


Dizer nunca é uma ação simples. Quem enuncia detém poderes importantes de inscrever registros e universos. Contudo, neste exercício proposto por Clóvis, parceria que me instiga e provoca, espero ter desvelado sonhos e pesadelos para dialogar com os trabalhos da programação e com as coisas todas do mundo. 


Dizer com arte é muito delicado e me alegra no sentido de inquietar, poder ver tantas obras provocantes de tantos artistas engajados em reorganizar o mundo. Estimulam a coragem de sua criação e assim reunidos numa curadoria, de um festival como o Curta Dança BH, criam os universos paralelos onde é possível elucubrar desdobramentos de novos devires para a sociedade. Borboletas voam em meu estômago.


Não é aceitável que algumas formas de viver sejam protegidas e outras não, e a dança aqui, nos convoca a meditar e a agir sobre isso. Aqui vejo, se alguém está confortável no mundo agora, nesse momento, é porque apenas alguns sustem as dores e os medos de uma engrenagem cruel. 


Dançar sem medo para curar a humanidade.


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Referências Bibliográficas

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços; Porto Alegre: L & PM Pocket, 2014;

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo; São Paulo: Companhia das Letras, 2019;

_____________;A vida não é útil; São Paulo: Companhia das Letras, 2020.


sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Escritas em Dança - SINAIS DE VIDA: Danças curtas, pequenos lampejos e crítica-vagalume

 SINAIS DE VIDA:

Danças curtas, pequenos lampejos e crítica-vagalume


Clóvis Domingos


Não posso me impedir de pensar numa crítica que não tentaria julgar, mas procuraria fazer existir uma obra, um livro, uma frase, uma ideia.  Ela multiplicaria não juízos, mas sinais de vida. 

Michel Foucault. 


Dança-curta "Francisco", de Mariana Câmara

Dança-curta "Francisco", de Mariana Câmara


Emitir sinais. Produzir sons. Fundar mundos através de movimentos e palavras. A atividade artística, no caso a dança e as artes do corpo, não só emitem vida, mas a produzem, nutrem e adubam o solo seco e árido, transformam a matéria, moldam realidades. Escrever sobre e com alguns trabalhos de dança é sempre um desafio, uma tentativa de leitura a partir de sinais captados, frágeis luminosidades, faíscas, um habitar a escuridão. Exercício de tatear com os rastros e restos que ficam inscritos em nossa memória.

Entre dizer e não saber o que e como dizer de uma experiência com a dança, busco nessa escrita apresentar pequenos lampejos. Uma crítica-vagalume. Danças curtas podem nos pedir longas meditações. É como atravessar uma floresta de signos, acolher a perdição, abraçar o assombro e assim também dançar, bailar imagens, ideias e pensamentos. 

Como a (bordar) os trabalhos que acompanhei na programação dos três primeiros dias do CURTA DANÇA 2021, de modo a não impedir seus voos ou que minha escrita os engaiolasse em definições? O jeito foi então escrever embaralhando, inventando, soltando a mão e a imaginação... 

Danças, pássaros e pipas. 

Uma imagem: as roupas lavadas seguem presas num varal e balançam. Ali acontecendo uma dança silenciosa. O vento fazendo uma delicada coreografia nesses corpos coloridos. Algo retém e ao mesmo tempo impulsiona. 

Poéticas do sopro. 

Isso do ar. 

Isso, doar:

Sinais de vida. Sinais de cena. Sinais de um corpo que escreve. 

Isso dói: estar vivo. 

Roçar o futuro:

Dançar agora. Dançar intensamente. DançAR. Por aqueles que agora não podem dançar. Dançar a vida. Roçar a pele do tempo. Porvir.

Com Francisco inicio minha prática escrita movente. Nessa dança curta o tempo de gestação é longo. A sala é um útero que gera poesia. Promessa de amanhã. O redondo. A mulher dança a bola mundo ao som do piano de um instrumentista infante. Tudo vibra. Estão ali a mãe, o pai, o bebê, a sala, a câmera, a luz e a celebração. 

A espera baila e tem nome: Francisco. 

Insistir em dançar em meio a uma quarentena.

Insistir em criar vida em meio a tanta morte. 

Francisco. Fran(insisto).

Na batida do coração. 

Metamorfoses

São tempos para desconfinar os corpos e os sentidos. Trocar de pele. 

Como você sente teu corpo entre paredes, telas e aparelhos eletrônicos? 

Em Samsa: a vida dentro da casa. Através do vidro embaçado da janela respiro desejos. 

A casa-corpo-refúgio-mundo. São tantas transformações. Descobertas. Experimentações. Tudo meio Kafka. 

Quando contato físico é ameaça de destruição. 

Dançar entre as roupas, criar cabanas, revirar o organismo. Fazer saúde pelo desequilíbrio. 

Uma solidão acompanhada pelos objetos e materialidades domésticas. 

A barata. A barata. A vida barateada. Ser barata descansa a gente dessa humanidade preço caro e alto demais. 

Não há nada de absurdo. Há abuso. 

Essas danças radiografam nossa vida covidiana. 

Danças incendiárias

Com Dança sem medo e Societas ali se juntam todas elas. Por todas ELAS.

Danças femininas, feministas, combativas. 

Corpos desobedientes. 

Uma “poética da interrupção” em Societas convoca o espaço urbano a dançar. 

Disrupções carnais e poéticas contra as medidas protéticas. 

Trocar anestesia por Alegria. 

Uma instalação ou uma “instaura ação”? O estranho provoca uma outra política da sensibilidade. 

Corpas coletivas, coletoras, insuflam vida. 

Dança sem medo: danças- manifesto ou serão many-festas

Acender as labaredas da revolta, denunciar as violências de gênero, clamar por justiça. 

Danzar la rabia. 

O CURTA DANÇA 2021 parece ter priorizado trabalhos latino-americanos e numa perspectiva decolonial. 

Hoje temos o desafio de se criar obras digitais. 

A coragem de produzir esse festival num Brasil que criminaliza a cultura das artes. 

Entre mãos, entre manas

Divido com Giovany Oliveira a cobertura crítica dessa edição do CURTA DANÇA e trocamos mensagens e áudios:

- Já começando as escritas aqui... 

- Te desejo uma boa travessia junto aos trabalhos!

- Nossa, que desafio escrever a partir de danças curtas...

- E você realmente acreditou que elas são curtas? Elas têm o tamanho e a duração da tua disponibilidade, da tua curiosidade.

- Escrever é sempre uma aventura. 

- É a minha mão com a tua mão na contramão de tantos nãos...

Pausa luminosa

Pode me dizer se esse meu gesto pirilampo está chegando aí em você? 

A luzinha fraca também é uma espécie de luz.

A imagem sobrevivente.  

Sinais. Quantos sim e quantos ais, a gente geme?

Acender. Apagar. Entre aparecimentos e sumiços, rodopio. Invento fugas. É sobre o viver.

Estou há dias escrevendo com essas danças. Curtir o CURTA DANÇA, não é “dar likes”, mas permanecer com, ficar junto. Tempo curtido aqui é tempo expandido. CURTA DANÇA é um convite meio assim: se deixe atravessar pela dança, curta a dança, corta dança, se despedaça com ela...

O espírito da intimidade: fazer de danças curtas danças curtidas e vivenciadas. 

É mais sabor e menos saber. É mais ardor e menos compreender. 

Quando a escrita deságua

“Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”.

  Guimarães Rosa. 


Essa citação aí acima chegou em mim toda serelepe enquanto assistia Encontros, Desencontros e Reencontros. 

A salvação está na transcendência. 

O Grupo Jovem Arte Passo mistura dança, circo e corpo na cidade. 

Da arte de exercitar levezas. 

Os bailarinos dançam de máscara. Reencontrar a vida na praça e criar aglutinações coloridas. 

Em Corpo sob efeito d’água o dançar a sós e o dançar os sons. O que pode a escuta?

Já o corpo ondula na dança Memória Corporal da Rainha. Uma ancestralidade que espirala. 

Somos feitos de memória. 

Se ela dança, todos dançam. Nela dançam essas forças. 

Cuidar do ÔRÍ

Uma citação, uma convocação: “Ôrí significa uma inserção a um novo estágio da vida, a uma nova vida, um novo encontro. Ele se estabelece enquanto rito e só por aqueles que sabem fazer com que uma cabeça se articule consigo mesma e se complete com o seu passado, com o seu presente, com o seu futuro, com a sua origem e com o seu momento...  Então toda dinâmica desse nome mítico, oculto, que é o Ôrí, se projeta a partir das diferenças, do rompimento numa outra unidade. Na unidade primordial que é a cabeça, o núcleo. O rito de iniciação é um rito de passagem, de uma idade para outra, de um momento prá outro, de um saber pra outro, de um poder atuar para outro poder atuar” (Beatriz Nascimento).

Há algo que também gira em Sonhos de Gaveta. Travessia: abre caminho, abre caixa, abre baú, abre sonho. 

A noite liberta nossas fabulações mais íntimas. A vida não pode ser reduzida ao estado de vigília. 

Você sonhou muito durante a pandemia? 

É possível caminhar no escuro. 

Corpo negro serpenteia. 

Movimentos de hip-hop num modo lento, num desenho que captura minha atenção, dá vontade de fazer junto. 

São danças-rio. Estou molhado. 

Meus olhos cheios d’água. 


pelas JANELAS ou (essas danças pandêmicas)

Serão as danças curtas do CURTA DANÇAS, cenas em processo? Que bom encontrar acolhimento para compartilhar pesquisas e danças-semente. Trocas significativas. Aglomerações criativas. 

“Somos feitos de inacabamento”. Paulo Freire. 

Da importância de espaços de investigação. Trago um trecho do texto de Gladis Tripalli: “No exercício da experiência investigativa em dança, a elaboração de hipóteses requer um corpo em condição de questionamento.  A condição de questionamento implica a abertura de um corpo para experiência reflexiva do movimento. O corpo, em estado de investigação, é um corpo capaz de questionar e questionar-se em ação – de refletir sua própria ação enquanto a ação acontece. O movimento produzido pelo corpo desenvolve a capacidade de pensar sobre o próprio movimento “em movimento”. O questionar de um corpo está interconectado na sua capacidade de perceber e de elaborar informação enquanto percebe; de um corpo que percebe agindo e age percebendo, que observa e modifica, é observado e é modificado. O corpo que possivelmente formula movimentos como hipóteses é um corpo que se dispõe, que se coloca em prontidão para o exercício de mover-se pela e com a dúvida, sugerindo outras e novas possibilidades de movimentos como perguntas e também como possíveis resoluções”. 

Dançar produz complexidades.  

Seguindo o terceiro dia da programação do CURTA DANÇA escrevo: janelas abertas das telas, das sensibilidades e nas texturas das videodanças. 

A janela como entrelugar num contexto pandêmico. Danças caseiras. Criar na impermanência. 

Enquanto se dança também se morre... 

As janelas em Odé-ssi: uma caça e Diário de um quarentenado: rasuras autobiográficas para o por vir, me expandem a percepção do corpo-ambiente atravessado pelo mundo. São trabalhos sobre ancestralidade, autobiografia, referências literárias pretas, abordam os apagamentos coloniais. Corpos em diáspora. A relação entre dentro e fora, a encruzilhada. 

 

A sala é mato onde a energia de Oxóssi se presentifica em Odé-ssi


Eu caço as palavras. Palavras são flechas. 

Quarentenado do Rodrigo Antero dança nas frestas:

O arame enfarpado

O céu azulado

O corpo recriado...  

Um desenho com as nuvens. Os retratos, as rasuras, as procuras, 

As CURAS. 

“Se eu não puder dançar, não é a minha pandemia” nos lembra Julian Fuks. 

De cócoras

Agachado. De prontidão. Agora escrevo apoiando o caderno no chão. 

Como sair do buraco? 

Com Ensaio para o início do fim aceito que é preciso dançar com as ruínas, não sobre elas. Também somos parte. 

Deixar faltar o ar. Desacelerar. 

Morre prá nascer de novo. 

Abraçar o FINTURO. 

Uma provocação: “E se o pensamento desse um passo atrás, se encontrasse como parte de toda a bagunça de tudo aquilo que é o pleno e se contentasse em fornecer soluções momentâneas a cada instante de acordo com uma intenção mediada pelo contexto dado”? Denise Ferreira da Silva.

Uma réstia ainda é luz

Escrever me deixa fraco, logo forte. 

Emitir sinais de vida des(cansa). 

Fazer arte em tempos de incerteza. 

Com o delicado, minimalista e necessário Mouco: uma dança para a sociedade vou me despedindo nesse texto. 

O dançar de um bailarino com deficiência auditiva me ajuda a escutar a diversidade do mundo. Tua carta-dança chegou aqui. 

O aparelho auditivo é dispositivo e sonoridade do trabalho e inscreve um outro modo de ser gente.

O corpo nu sob a terra: húmus, humano, humildade, matéria informe. 

Se curvar, se dobrar, se encolher, desacelerar. Corpo casulo.

É dessa suavidade que ando à procura. 

Danças-refúgio. 

O vagalume é autoelétrico. 

Minhas escritas são fosforescentes e intermitentes. 

Fazer da crítica de arte: bioluminescência.

...

Aos artistas:

O que faz um vagalume brilhar? 

Vocês prometem continuar emitindo sinais de vida?

Vocês prometem continuar? 

Vocês prometem?

Vocês pró “mentem”?

Vocês?

Sim, vocês

Vós

Sim, vocês....

Voz. 


“Tu vens, eu já escuto os teus sinais” Alceu Valença.  


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Entrevistas: Bruno Novais

 A partir de hoje, começamos a publicar aqui em nosso blog, uma série de entrevistas com artistas e pessoas que marcaram a trajetória da Curta Dança. Começamos com Bruno Novais, que participou das edições 2019 e 2021 da nossa mostra!




Conte um pouco para nós sobre a sua trajetória na dança. 

Minha trajetória na dança inicia desde quando eu tentava imitar o Michael Jackson e outras referências do R&B na minha casa. Meu primeiro curso de dança foi em 2007 com Dança em Salão em Guarulhos (cidade na qual eu nasci). Mudo para Bragança Paulista (interior de SP) em 2008 e experiencio por 1 ano integrar uma Cia. De Flamenco de 2014 a 2015, mas sempre levando o hip Hop comigo em meus trabalhos paralelos. Quando íntegro um grupo de teatro e dança contemporânea na mesma cidade, descubro como misturar todos os meus conhecimentos em uma dança que é MINHA, que fala da minha história. Com isso, mudo para Salvador em 2016 e início a graduação em dança. De lá pra cá, já realizei duas graduações, uma especialização e estou terminado o mestrado na mesma área. Atuo como diretor, interprete criador, produtor cultural, publicitário e editor de vídeo em um núcleo chamado EUS (Etnografias Urbanas Subversivas), no qual focamos em uma estética negra e seus intercâmbios com outras temáticas como género e sexualidade, feminismo negro e ancestralidade em cena. 


Quando foi sua primeira experiência no Curta Dança? 

Minha primeira experiência no Curta-dança foi em 2019, em sua 4° edição quando apresentei o meu solo intitulado Garra. Foi a primeira vez que viajei sozinho para apresentação de um trabalho e foi incrível. Fui super bem recebido, fiz amigues que levo pra minha vida até hoje e ainda comi bastante queijo com doce de leite (kkkkkk). 


Como foi o dia em que você descobriu que tinha passado no mestrado em pleno festival?

Foi incrível, eu soube do resultado 1 hora antes de entrar em cena. Sinto que a notícia potencializou o meu solo e confirmou todo o meu esforço e trabalho. No bate-papo logo após das apresentações daquele dia (09 de dezembro para ser mais exato, jamais esquecerei dessa data... Kkkk) pude dar a notícia para todo o público e os colegas artistas que estavam presentes comigo. Enquanto um artista negro e gay, que venho de um contexto periférico e consigo compartilhar uma boa nova logo depois de uma apresentação, foi uma conquista que jamais esquecerei. E poder divulgar isso com a galera do curta-dança só melhorou essa sensação.


Como alia teoria e prática em sua pesquisa como dançarine?

Minha pesquisa vem da minha experiência de vida enquanto uma bixa preta. Atualmente estudo sobre a pluralidade dos afetos negros e LGBTQIAP+ na dança contemporânea. Falar sobre afetividade nessa área, é trazer uma potência de corpo, alma e sentimento em danças criadas como forma de resistência e (rê)existência. Atualmente estou desenvolvendo uma metodologia em dança intitulada Mapeamento dos afetos, que consiste em um procedimento de reflexão e escrita pelo corpo utilizado como disparador para processos criativos. Penso que refletir sobre afetos pretes na dança nos permite acessar outras nuances de potencias dramatúrgicas. Ao mesmo tempo que registro essas escritas nos meus artigos e trabalhos acadêmicos, citando autores como bell hooks, Silvia Almeida, Renato Noguera, Sobunfu Somé entre outres, eu exército no meu dia a dia uma escrita corporal em minhas criações. 


O que te marcou na edição 2021?

Eu nunca tinha feito uma residência tão grande a partir dessa metodologia que venho desenvolvendo desde de 2018. Acompanhar as descobertas de cada participante de suas danças partindo de seus afetos individuais e coletivos, com certeza foi muito marcante. Os depoimentos finais também mexeram muito comigo, me mostrou que estou no caminho certo.


Como foi conduzir uma residência?

Conduzir uma residência online sobre afetos nesse momento que estamos vivendo focada nas corpas pretes e LGBTQIAP+, sem dúvida foi de extrema importância. Mesmo com a distância física, senti uma conexão muito forte do grupo, pontuando um cuidado extremo na maneira de interagir uns com os outres. Apesar de ter mediado, para mim é uma troca, aprendi muito com todes e espero poder viver outras tantas experiências tão boas quanto essa. 


Para você que participou da última edição presencial em 2019, o que mudou para esse ano online?

Tudo muda né, apesar de ter sido incrível e enriquecedor nesse modo virtual, estar perto, sentir o calor do outre, não tem preço. Admirei muito o cuidado, eficiência e agilidade da equipe do curta-dança, que conseguiu deixar esse processo bem mais leve. As duas experiências foram incríveis, cada um com os seus altos e baixos. O virtual permite conectar pessoas que talvez o presencial não permitisse. Então considero ambas valiosas. 


Quais as expectativas para a próxima edição presencial (torçamos que em 2022)?

A minha primeira expectativa é conseguir integrar novamente o quadro de oficineires e/ou artista apresentando (kkkkk). Eu só consigo esperar coisas boas desse festival e equipe de produção, pois ambas minhas experiências foram incríveis como mediador, intérprete criador ou público. Espero ansioso que estejamos em tempos melhores para poder abraçar e dançar lado a lado com essa galera linda!!!


Sobre Bruno Novais

Atualmente estou mestrando no programa acadêmico de Pós-graduação em dança da UFBA. Licenciado e Bacharel em dança pela Escola de Dança da UFBA. Interessado em pesquisar a afetividade negra enquanto instrumento propulsor em processos criativos. Dançarino, produtor do Núcleo EUS. Entre os seus principais trabalhos concebeu e dirigiu o espetáculo "POC - Pretas, Ousadas e Contemporâneas" (2019), dirigiu e interpretou o solo/espetáculo "Amargo: Uma reflexão performática sobre afetividade negra" (2018) e o "Experimento Negras Utopias" (2017) em parceria com Eduardo Guimarães.  Produziu e organizou quatro edições da Mostra Etnografias Urbanas (duas presenciais e duas online) com o Núcleo EUS (2019-2021) e o 3º FNAC - Fórum Negro de Arte e Cultura junto com docentes e discentes das unidades de artes da UFBA.