Dançar sem medo
por Giovany de Oliveira
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
Me ajuda a olhar!”
GALEANO, Eduardo, “A função da arte/1” in: O livro dos abraços, p.15.
Algumas vezes o medo se coloca fortemente presente nas pessoas e em suas relações. Talvez seja este um dos sentimentos que teremos de processar e lidar por algum tempo, enquanto durarem as lutas pela emancipação de todes e à todes forem conferidas a dignidade e o respeito. No contratempo do compasso dessa época, fui convidado a dançar por Clóvis Domingos com algumas ideias sobre os trabalhos assistidos dos três últimos dias da programação do Curta Dança BH 2021.
Porque não iremos deixar de dançar, o Curta Danças BH 2021 se inscreve com a sua mais recente edição enquanto catalisador de forças e pulsões. Ciranda de estéticas e discursos. Os acontecimentos dessa época têm sido intensos e muito duros. Vemos surgir e se desdobrar toda sorte de conflitos sociais e filosóficos, mas muito poucos para-quedas coloridos. É nessa curva da história que o Curta Danças mobiliza encontros em alinhavada curadoria.
Trabalhos diversos como diversas são as faces das artes das Latino Américas, a redimensionar o jeito de se pensar dança para o audiovisual. Paradigma cada vez mais iminente para artistas da presença, antes nem tão habituades às lentes e agora passando um bom tempo com elas. Quiçá justamente esse deslocamento de corpas e corpos antes tão presentes nos palcos, ruas e salões para a linguagem audiovisual, é que provoque o impulso desse redimensionamento.
E aqui vimos tramados em fina curadoria, trabalhos de diferentes naturezas, a pautar de certa forma as percepções de seus artistas em sua época, gerando um ambiente rico de trocas e reflexões filosóficas, estéticas, políticas, semióticas e mais um sem fim de reverberações possíveis para a conversa. Importante registrar a beleza da diversidade de técnicas que as corpas e corpos dos intérpretes trazem para essa trama. Diferentes referências, modos, poéticas e práticas se apresentam numa importante roda de saberes.
Tempo. Como num rito, uma convocação, sou tomado por uma emoção fininha no fundo de mim. Sabe quando alguma coisa se desloca no íntimo e não identificamos de início? Uma coisa louca. Aqui sou apresentado à “Canción sin miedo” de Vivir Quintana e El Palomar, me reorganizo na cadeira. Que música bonita! O trabalho me emociona e me posiciona responsável pelo mundo, pelos outros. Um brado forte como esse convoca, convida, sou enredado. O coro de El Palomar, um coro de mulheres, dá voz a letra de Vivir Quintana, uma letra firme, onde a eu lírico desenvolve um verdadeiro manifesto contra o machismo, feminicídio e outras violências.
Cada uma delas, é potência desse manifesto canção, onde denunciam os crimes que as acometem ainda; e marcam posição na história, a exigir reparação e memória para aquelas que aqui estão e por aquelas que já se foram. Suas vozes fortes ali na vinheta, arranjo apurado e entoando uma canção sem medo, me gera uma tempestade na cabeça, de pautas e necessidades, e problemáticas que ainda deveremos percorrer para encontrar um mundo mais seguro para todes. Brotam brados do fundo das gerações de mim. E transbordam brados da tela.
“Desbordes” transborda essa tela mesmo. Débora Sansó tateia devires possíveis para o que se supunha inabitável. Diretamente da Argentina, a artista elabora densa semântica, seu pincel vermelho é certeiro ponteiro. Transfere peso como quem respira, desenvolve trajetórias em planos e velocidades mil. Água na bacia, mar de si.. Que lhe dizem os pássaros e o vento? Cabe elaborar questões? Débora inscreve nuances, voa por uma cama, bota o movimento à mesa. O que lhe diz esse papel? Traduz inquietações, propõe jeitos. Dilatar também é correr, veja bem o mar que nunca se atrasa na bonança e na tempestade. Fotografias refazem um banheiro. Que mulher é esta? E esta mulher? Move paredes, crepitam luzes, vermelho. Revela feridas. Desejar! Vacila para avançar. Avança como para reconstruir. Uma imagem, será a sua semelhança? Os ritos desenvolvem sua progressão e um portal se abre para o sem fim do infinito, revela uma face que não vemos, ela corre, voa com destino ao mar.
Sobre inquietações podemos falar de “Avesso”, que trás do universo doméstico da pandemia, imagens para a pulsão de seu movimento. Da intimidade de um lençol de que se move, sou levado na dilatação de braços vivos. Um raio dispara progressões em diferentes planos por sobre uma cama. Lucas Manfré roça a existência, lá está nesse palco de borda infinita. Propõe rolamentos, quedas, a instabilidade é manifesta. Explora-a em diferentes velocidades e planos. Um devir só. Solitudes e inquietudes se refazem com o tempo, esse que é medida de todas as coisas. Lucas vira o verso no avesso do movimento que expande para recolher e recolhendo, expande enfrentamentos de cansaços, flutua. Torcem escápulas, movem-se arquiteturas. Contemplar o interno, giro. A cabeça vai primeiro. No inverso do verso de um universo, no avesso de um espaço assim tão íntimo, bem te vi. Num corredor e mascarado, bem te vi. Porta perto, salto e base. Mergulho no azulejo. Ser, estar, mover. Devir é luta.
Para as minhas lutas, chamo a força dos catiços, presente em “Catiço” de João Petronílio. O dançarino surge na quebrada, vai acender suas velas. Boca de luz, boca que vela, revela, boca que desvela, boca de catiço, boca de pinga fogo, boca de confusão. João é ao mesmo tempo entidade e médium, incorpora séculos de expressão, abre uma gira. Uma melodia chama os catiços. “Cês me dão licença e fica à vontade”. O artista nos relembra que voz é corpo. Tece espirais, transfere pesos, imanta energias. Laroyê! Doi! Doi! Doi! Doi! Doi! Um amor faz sofrer! Dois amor faz chorar! Treme a terra, a cera atinge o corpo do performer. Veste branco, veste luto, veste lutas. João morre para a viver a dança e nela renasce o catiço em noite profunda. Fogo, chama, combustão, a ginga de João é explosão solar, infinda em si mesma. Grande Anganga Muquiche, sua gunga não bambeia! Arde, vira, virou. O transe é de antes, já é e transborda.
(Com borboletas no estômago, me correspondia com Clóvis sobre as impressões que me faziam vibrar a cada trabalho, força pura! Calor…)
Para arder ferve a “Mandusada” de Amélia Conrado, Andreia Oliveira, Eduardo Almeida e Sibele Bulcão. É sol, é água, é mata, é folha e ar. Algo se move, me move. Uma estrada, uma rede, bastam para “frever”. Registram a mandusada e a atualizam em novas máscaras. Aqui intérpretes são o próprio elemento, chama e água e terra e lama e poeira e tudo de mover. Com o pulso do frevo de Siba, experimentam diversas velocidades, a edição sobrepõe performances e os intérpretes parecem estar juntos algumas vezes. Quadradinho de quatro, de oito, de um milhão. Voo. Pressa ardente de viver. Rastros, pegadas, registros. Desenham novas formas de dizer.
E diz muito “Meu lugar de fala” de Paula Marinho. Num campo nublado a negrura da mulher irrompe a campina, acelera segura. Obá é uma guerreira valente. Desvela camadas, revela torções. Cambré. Incorpora um protesto, é certeira. Hey! Controla seu centro, tem base. Velocidades, planos e espirais. Ela fita, encara. Tece um feitiço, confirma no Aú. Saúda a terra, evoca a memória da terra, o sangue seu, o sangue meu, o desta mesma terra. Paula é Yabá e é Legbara. Paula é dona do barro como Obá, dona das águas silentes. De águas silentes enuncia mundos. Hey! Como Oyá pontua o destino daqueles que se foram, tão jovens. Menos um para nós e mais um para eles. Bravamente dança dores seculares, organiza mandingas debaixo do seu pé. Ruma ao futuro como quem encara uma guerra.
Cássia Messeder e Luiza Machado convidam ao futuro na cena “Um corpo que é só meu”. Vestido branco, macacão preto. Solo de piston, ijexá, espirais. A música de Ekena preenche o espaço. Leveza e beleza. Pé no chão, contato. Me dê sua mão! Gira, vira, revira tudo e roda. Tem contato, profusão de forças, reverência. Capoeira, balé, samba de roda, contemporânea, barravento, ijexá, jazz, é tudo delas e de suas manas, que convidam a dançar. Apoteose da partilha, comunhão de manifestos. Dançar é uma revolução! É tudo delas, dançam, agitam as corpas na obra por se construir. O trabalho das artistas me lembrou o que diz o pixo de um beco ali “Teu corpo é poesia mulher, declame!” E declamam passos de dança, as incríveis mulheres dessa América, para girar o pensamento sobre as corpas por esse território.
Em meio a dunas e entre pássaros, "Territórios de afecto” de Carlos Nuñez e Pedro García colocam em deriva novas formas de masculinidade. Espaço no passo do outro. Me abraça? Na pergunta e na resposta algo aparece do contato improvisação, transferem peso sem demandar. Mar que borda limites para o humano. Pegadas e rastros, o que te inquieta homem? Pode falar! Nesse território de afeto podes decantar humores, os artistas nos convidam a isso e não há porque se furtar do exercício. Contato, com tanto, com tato, contudo. Salto, solto. Queda e recuperação. Entre voos e rolamentos, me abraça forte à luz do dia? Me reconheço em você. Abraço forte.
Forte é “Breu”. Bianca Sanches e Irlan Paixão nos situam intimamente dos acontecimentos do dia três de novembro de mil novecentos e dois mil e vinte. Nessa data, a população do Amapá se viu diante das consequências da privatização dos serviços de energia elétrica e inação dos governantes, quando após forte chuva, 13 de suas 16 cidades ficaram sem luz. Foram 22 dias de caos, com os serviços interrompidos, escassez de alimentos e água, protestos e tensão. Raio, chuva, trovão. Vela e giro, pé no chão e fé no nada. Energia. Minha mãe, água informação. A dança como denúncia do Estado que abandona e a imprensa que se curva. Nada é só e é isso; não é por acaso, um descaso que não pode ser lembrado como acaso. Há um projeto em curso, os artistas o sabem e pontuam. Vinte e dois dias no breu, consegues imaginar? Dançar para mover a linha tênue e alagada que separa nortes e sul. Cavar potências e dançar a denúncia daquilo que nos extermina. Ou a renúncia do inominável que nos pilha.
Yuriê Perazzini cava potências nos becos de Salvador. Nos apresenta arte contemporânea da melhor qualidade. Um fone, uma batida, uma explosão. O gesto vem irrompendo e estoura. Amarelo, verde, vermelho. Desliza as voltas da música de Damian Marley. Numa deriva, Yuriê nos revela a mais fina curadoria em graffitis, pixos e lambes do seu percurso. Quem tem, joga e chama no twerk, no funk, kuduro e street dance e bota mais e mistura tudo, avança para além da arquitetura; propõe movimentos para o ambiente, para a cidade. Experimenta os limites que vem dessas encruzas todas. Reverência e esquina. Magia.
Experimentos e magias ouvimos em “Ecos de recolhimento” com Bárbara Maia, convite a sentir, respirar, ouvir, cheirar, tocar. Mover pelos sentidos. Luzes, sombras, cinza. A audiodescrição é um importante elemento da construção. Olho vivo, pisca atento, fita. Dedos pesquisam. Do tato ao todo e à parte. Um universo infindo que espraia em infindos multiversos. Como jogar com a vulnerabilidade? Vela, instabilidade, inverso e avesso, torce e retorce, procura mas não vê. Por um foco acompanhamos o desenvolvimento e eu que estou sentado, tenho joelhos flexionados. Que textura é essa? A artista ouve a terra, vive os apoios, escorrega pelas suas possibilidades em velocidades que se alternam. Não tão lento como uma tartaruga. Estamos prontos para essa conversa? Para Roberta Abdala!
Entre pássaros e tartarugas, segue ligeiro um caranguejo. Amanda Moreira marca trajetória e compasso em “A(CU)PE é minha”. Num campo e coroada, apresenta as faces da realeza africana. A voz de Uéslei Max musicaliza manifestos imprescindíveis aos progressos da dança. O plano abre e Amanda cresce, reina por toda a extensão do enquadro quando desenvolve sequência de giros e espirais e rolamentos e infinitudes. Pulsão ancestral em gingas atualizadas. Planos e velocidades permeiam a obra. Areia, vento, arbustos, histórias, águas. A realeza africana não só pode como voa.
Voa na linguagem Rafaela Lima na obra “Feminal”. O que mascara a máscara? O que revela desta mulher? Tapete, box, casa. Tão familiar e tão sufocante. O plástico do box oferece a materialidade das relações tóxicas, na medida em que a intérprete desenvolve partituras de anulação do seu rosto com esse objeto. Parece prender a artista, que reúne dores fortes de diversas companheiras, aqui transmutadas em linguagem e denúncia. Água de choveiro, jogos com os braços. A água acalma ou provoca? Injusto carregar tanto. A água que é feminina, ampara e afoga, mas não engana ninguém. Já o mesmo não se pode dizer do que medra do masculino.
Dizer nunca é uma ação simples. Quem enuncia detém poderes importantes de inscrever registros e universos. Contudo, neste exercício proposto por Clóvis, parceria que me instiga e provoca, espero ter desvelado sonhos e pesadelos para dialogar com os trabalhos da programação e com as coisas todas do mundo.
Dizer com arte é muito delicado e me alegra no sentido de inquietar, poder ver tantas obras provocantes de tantos artistas engajados em reorganizar o mundo. Estimulam a coragem de sua criação e assim reunidos numa curadoria, de um festival como o Curta Dança BH, criam os universos paralelos onde é possível elucubrar desdobramentos de novos devires para a sociedade. Borboletas voam em meu estômago.
Não é aceitável que algumas formas de viver sejam protegidas e outras não, e a dança aqui, nos convoca a meditar e a agir sobre isso. Aqui vejo, se alguém está confortável no mundo agora, nesse momento, é porque apenas alguns sustem as dores e os medos de uma engrenagem cruel.
Dançar sem medo para curar a humanidade.
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Referências Bibliográficas
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços; Porto Alegre: L & PM Pocket, 2014;
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo; São Paulo: Companhia das Letras, 2019;
_____________;A vida não é útil; São Paulo: Companhia das Letras, 2020.